Pastoral dos Solteiros (III): Ser Solteiro

por Pe. Paulo Coelho, scj (Jantar conferência: "Ser Solteiro: situação temporária dolorosa ou uma oportunidade?", 17.05.19, Seminário de Nossa Senhora de Fátima, Alfragide)

Ser solteiro: situação temporária dolorosa ou uma oportunidade?  

O termo “solteiro” deriva do latim solitarius e significa “isolado”, “separado”, “aquele que vive só”. Enquanto condição, “solteiro” é regularmente designado como aquele ou aquela “que não casou”, em contraste direto com o estado matrimonial. Por ocasião da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada em Roma, de 2 a 28 de outubro de 2018, sob o tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, a Igreja refletiu sobre a situação atual dos solteiros. O tema já se encontrava enunciado naquele que era o Instrumentum Laboris, de 19 de junho de 2018, em ordem ao referido Sínodo, quando, no número 105, falava da “condição inédita dos solteiros”:

“Enfim, algumas Conferências Episcopais perguntam-nos qual é a colocação vocacional de pessoas que escolhem permanecer solteiras sem qualquer referência a uma consagração em particular ou ao matrimónio. Dado o seu aumento numérico na Igreja e no mundo, é importante que o Sínodo reflita sobre essa questão”.              

Fruto de uma perscrutação do mundo atual, o Instrumentum Laboris reconhece, com significativa extensão geográfica e com números expressivos, que muitas pessoas “escolhem permanecer solteiras”, não optando, propriamente, por um dos dois estados de vida mais comuns na Igreja: a consagração ou o matrimónio. A situação corresponde, em muitos casos, a uma opção de vida, motivando a Igreja a perguntar-se sobre a “colocação vocacional” destas pessoas no seu seio, uma vez que muitos receberam o batismo.            

O Documento final da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo, por sua vez, dedica o número 90 explicitamente ao tema dos solteiros:

“O Sínodo refletiu sobre a condição das pessoas que vivem como solteiros (single) reconhecendo que com este termo se podem indicar situações de vida muito diversas entre si. Tal situação pode depender de muitas razões, voluntárias ou involuntárias, e de fatores culturais, religiosos e sociais. Pode ainda exprimir uma gama de percursos muito ampla. A Igreja reconhece que tal condição, assumida numa lógica de fé e de dom, pode tornar-se um dos muitos caminhos através dos quais atua a graça do Batismo e se caminha em direção àquela santidade a que todos somos chamados”.              

O tema dos “solteiros” foi objeto da reflexão do Sínodo dos Bispos e, muito embora, no corpo do texto, acabe por receber um destaque direto relativamente sóbrio, a sua compreensão merece ser integrada à luz do inteiro Documento.

Antes de mais, o Sínodo reconhece que a situação dos solteiros é indissociável de um registo biográfico para o qual podem concorrer várias razões “voluntárias ou involuntárias” e outras de ordem cultural, religiosa e social. Neste sentido, a situação dos “solteiros” diz sempre, direta ou indiretamente, alguma relação à sociedade e não pode ser julgada, de modo repentino, como uma qualquer coisa que concerne o simples indivíduo. O Sínodo dá conta de uma interdependência entre a situação dos solteiros e os seus contextos e vice-versa, onde deve concorrer uma mútua responsabilidade.

Por outro lado, o Sínodo reconhece que, em situações concretas, a “condição” dos solteiros, quando assumida numa “lógica de fé e de dom”, é suscetível de se tornar “um dos muitos caminhos dos quais atua a graça do Batismo e se caminha em direção àquela santidade a que todos somos chamados”. Trata-se, segundo o Sínodo, de uma “condição” e, muito embora possa vir a configurar-se no tempo de modo contínuo, não fala propriamente de um “estado”. Esta precisão parece indicar qualquer coisa típica da situação dos solteiros. Antes de mais, a condição dos solteiros reveste-se sempre de uma certa provisoriedade, pelo que tal situação pode representar a memória, a ser preservada, do limite tangível e constitutivo da existência humana no mundo. Esta consciência pode, além do mais, trazer consigo aspetos úteis. Os solteiros, pela simples situação de o serem, podem melhor evidenciar os confins da individualidade e da liberdade de cada um, como elementos necessários à alteridade e à responsabilidade; podem fazer emergir ideias, sentimentos e atitudes sempre mais expressivas da vida interior, até, por vezes, como antídoto à falta de autenticidade. A situação dos solteiros pode figurar, assim, como real “condição” para estabelecer relações recíprocas, mas com profundidade e originalidade. Tratando-se de batizados, os solteiros encontram-se já dentro de uma orientação vocacional em ordem à santidade, mas, uma vez acolhida “numa lógica de fé e de dom”, tal condição pode apresentar-se como um “caminho” estável através do qual atua a graça do batismo. A condição dos solteiros pode representar uma forma específica de seguir Cristo na Igreja e em ordem à santidade enquanto refletir a doação de si, mesmo diante das provas, para as quais importa particularmente a fé para as viver numa dimensão de transcendência. Uma opção por permanecer solteiro deve, então, atribuir uma razão conveniente a quanto vive, ter um horizonte de sentido de modo que se saiba a quem entregar a sua vida: aos outros e a Deus. Deste modo, a condição por quem opta por permanece solteiro encontra um valor positivo, enquanto comporta uma escolha totalizante da pessoa com o seu projeto existencial. Por outro lado, apreciará as outras vocações existentes na Igreja, como a vida consagrada e a vida matrimonial, considerando-as, aliás, mais comuns do que a sua.  

Na recente Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christus Vivit, de 25 de março de 2019, no número 267, o Papa Francisco refere-se aos solteiros indicando que estes podem converter-se num testemunho particular de uma tal vocação:  

“Para aqueles que não são chamados ao matrimónio ou à vida consagrada, devemos recordar sempre que a primeira e mais importante vocação é a vocação batismal. Os solteiros, mesmo que o não sejam intencionalmente, podem converter-se em testemunho particular de tal vocação no seu próprio caminho de crescimento pessoal”.  

O Papa Francisco lembra que a vocação transversal a todos na Igreja é aquela batismal. Neste sentido, também os solteiros, em particular aqueles que “o não sejam intencionalmente”, podem oferecer um testemunho de uma participação ativa e plena na comum vocação batismal. O Papa entende oferecer caminhos de esperança dentro da vida cristã a quem não optou pela vida consagrada ou matrimonial, ou que, involuntariamente, se encontre na condição de solteiro. A situação destes últimos pode, diz o Papa, “converter-se em testemunho particular” da vocação batismal. Uma requalificação da vida não há-de ser qualquer coisa de inevitável e de fatídico. É possível, pois, uma conversão, um olhar novamente para a vida com fé e recuperar a parte mais original da identidade humana e espiritual, para novamente dar uma resposta assumidamente livre e totalizante como dom de si. Tal conversão ajudará, por um lado, a pessoa a libertar-se de certas condicionantes que tenham determinado uma certa inevitabilidade da sua situação e assim voltar a si mesma de modo assumido e amadurecido, e, por outro, a sair de si mesma para ir, como dom generoso de si, ao encontro do(s) outro(s). Neste processo, entretanto, pode renascer a oportunidade real de considerar novamente a possibilidade da vocação ao matrimónio ou à vida consagrada.

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